Não tenho o hábito de anotar sonhos. Já tentei algumas vezes manter caderno e canetas ao lado da cama para isso e não funcionou. Nenhuma das minhas tentativas tinha a intenção de registrar o que foi sonhado para fazer alguma coisa com aquilo. Seja levar para a análise que eu sequer faço e provavelmente nunca vou fazer ou criar um acervo de ideias para escrita. Eu só queria não esquecer tudo tão imediatamente, não sentir o sonho descer todo pelo ralo antes mesmo de me levantar da cama.
Anotar é correr contra o tempo, é impor a lógica da vigília ao mundo sonhado. E, pelo menos na minha experiência, é também a pior ideia do mundo se a gente for pensar em efetividade, porque o movimento muscular e cerebral necessário para empunhar a caneta e formular o que escrever te afasta cada vez mais daquilo que você quer tentar registrar.
Falar é mais fácil. Os sonhos que consigo lembrar de forma mais vívida ganharam essa forma, porque eu abri os olhos e comecei a contá-los para quem estava do lado. Falar é muito mais intuitivo que escrever. Escrever é uma atividade inventada, mas falar não. A gente conta histórias desde muito antes de escrever histórias e um sonho é só mais uma história que a gente conta para si mesmo, enquanto o cérebro trabalha para criar, consolidar, refazer e desfazer conexões neurais que formam nossa memória.
Enquanto o cérebro trabalha assentando todas as informações, acontecimentos e sentimentos do dia vivido, ele também sai apertando todos os botões que vê na frente e, a depender de uma combinação em que a ordem dos fatores é também muito importante, seu sonho rende um duplo twist carpado e você fica sem entender como foi que você conseguiu fazer aquilo.
Sonhar é colocar tudo no liquidificador. É por isso que essa noite eu vi o Dwayne Johnson levantar a pedra mais pesada do mundo em uma exibição que fazia parte de um evento de divulgação científica, participei junto de vários cientistas da descoberta de um planeta rochoso muito distante da Terra e fiz amizade com uma poderosa e gigantesca serpente de pedra que vive entre o Manto Terrestre e a Crosta, na Descontinuidade de Mohorovičić, mas, curiosa, vez ou outra vem dar um oi aqui em cima.
Se quando criança eu tinha como hábito assistir Cosmos e catar pedras para minha coleção onde quer que eu fosse, vez ou outra ambos os interesses vão ser postos para jogo. Ou como tema, exatamente como foi dessa vez, ou como detalhe, como quando, no meio de um sonho com o Maguila, surgiu uma menina chamada Ágata e ela contou que sabia como era ser uma pedra, porque ela era uma quando nasceu. Se minha amiga Luiza Ferreira Leite acabou de publicar “O livro das pedras” pela Cachalote, ela vai aparecer no sonho escrevendo um poema para a serpente de pedra que ela nem sabe que existe. Se Dwayne Johnson é um cara muito musculoso e conhecido pelo público pelos seus papéis em filmes de ação e o apelido “The Rock”, é lógico que ele vai dar as caras no meu sonho que parece ter como tema justamente as rochas e os planetas rochosos e acabar levantando uma pedra pesadíssima e assim supostamente desafiar as leis da física e da biologia em uma exibição de divulgação científica. Se a serpente de pedra do meu sonho vivia onde vivia e fazia o que fazia, Ouroboros e outras histórias mitológicas influenciaram sua existência. Se há uma serpente de pedra amiga minha em qualquer sonho que eu tenha, o Pokémon Onix com certeza foi uma referência.
E o mais interessante disso tudo é que no ato de contar um sonho, ele vai sendo inventado e é assim que a gente inventa a si mesmo. A gente sonha, enquanto nosso cérebro trabalha para organizar e reorganizar tudo aquilo que a gente chama de memória. A gente acorda e, na tentativa de lembrar, a gente cria algo novo, totalmente diferente do sonho que de fato foi sonhado naquela noite.
Cada segundo desperta conta como obstáculo para acessar a memória do sonho. Temos um ou dois minutos para conseguir lembrar daquilo mais ou menos, isso se você tiver a sorte de acordar logo após sonhar. Nesse momento, a gente tenta impor às cenas desconexas alguma linearidade e, assim, dar sentido àquilo. Saímos apertando vários outros botões, porque a cena lembrada precisa de contexto, coesão e coerência. E o que durou seis longos minutos vira o sonho de uma noite inteira. A gente pega uma única cena e enche linguiça até quase virar um livro, porque um sonho precisa se tornar algo que pode ser contado. Nem que seja só para gente, como tentativa de apreendê-lo.
Anotar sonhos então é uma atividade impossível. O que a gente anota ou conta para alguém é uma outra coisa. É um produto da vigília. O sonho, como sonho mesmo, mora no terreno do impossível, porque lembrar de um sonho é também esquecê-lo.
Ao compartilhar com vocês um pouco do que vivenciei nessa noite pedregosa, eu não estou dividindo uma memória, mas uma história baseada na sensação que eu tive ao acordar. Certamente inventei alguma coisa pensando que estava na verdade lembrando de algo, mas sei que a estranha atmosfera desse mundo ficou em mim como algo bom. Algo bom, lindo, divertido, curioso e absurdo, mas principalmente bom, lindo, divertido e curioso. E tentar lembrar disso tudo foi como amassar um pãozinho imaginário até dar diferentes formas de pedra a ele.
o que estou lendo?
“Nostalgias canibais” de Odorico Leal (Ayiné) foi meu primeiro lido do ano. Se você está buscando um livro de contos original, meio engraçado e um pouco absurdo, leia esse por minha conta e risco. O que mais me chamou a atenção nesse livro foram as diferentes vozes e personagens que o autor desenvolveu para contar suas histórias. Entre eles, há um narrador canibal que atravessa séculos de Brasil, um feio concurseiro e uma jornalista que não leu o livro de um escritor ressentido e precisa conseguir dele uma boa entrevista. Eu achei absolutamente genial.
Inspirada pelo Globo de Ouro de Fernanda Torres, decidi ler “Fim”, primeiro romance da nossa atriz totalmente premiada. Gostei muito, um ótimo e ácido retrato da masculinidade classe média do século XX e, de tabela, dos padrões de gênero esperados e de tudo aquilo que era naturalizado e tem deixado de ser bem devarinho. Bem zona sul do Rio, meio cru, bem incômodo, mas também meio engraçado. Inclusive posso dizer que ainda estou aqui meio puta com a Fernanda Torres após terminar o livro. A mulher é um fenômeno atuando em dramas, é fantástica quando faz humor, tem um amigo como Selton Mello torcendo por ela, é dona de um carisma absurdo e ainda escreve muito bem e não tem medo de criar personagens detestáveis. Desse jeito, não sobra nada pra nós reles mortais.
Depois dessas duas porradas, decidi ler um livro para ficar com o coração quentinho. Escolhi a “Estrelas cadentes são meteoros que chegam à Terra”, novelinha juvenil que minha amiga Amanda Magalhães publicou na Amazon para tentar um concurso da plataforma. Fofa, essa história fala sobre amizade e primeiro amor e me fez voltar a ter 14 anos.
No meu blog, vocês podem conferir a minha lista de melhores leituras feitas ano passado. Criei categorias aleatórias para encaixar alguns dos livros que eu fazia questão que aparecessem nela, mas ainda assim faltou título. A lição que fica é que toda lista é injusta, inclusive com o próprio criador da lista.
Como muitos de vocês sabem, eu estou sempre metida em clubes do livro. Se vocês querem saber parte do que ando lendo, basta acompanhar a agenda dos projetos de leitura que faço parte e também o Bafo de Poesia.
Por exemplo, no dia 23 de janeiro, eu vou seguir meu processo de repouso e recuperação de uma cirurgia odontológica participando discretamente da Casa das Poetas. Estamos lendo “Submersa” da Cecília Rogers nesse mês. (Para participar, inscrições são necessárias. Clique aqui e saiba mais.)
E no dia 25 de janeiro, às 10h do horário de Brasília, vamos papear com a autora sobre um livro que promete render uma conversa angustiante, sensível e muito contemporânea no Clube Cidade Solitária, meu querido clube de leitura de estimação. “Virgínia Mordida” da Jeovanna Vieira é nossa leitura escolhida para janeiro. (Quem quiser participar desse encontro é só se inscrever aqui).
E já que estamos falando de clubinhos, quero contar para vocês que o Cidade Solitária foi citado em uma matéria no site Guia do Estudante e desde então muita gente nova está chegando no projeto.
o texto sonhar toda noite e catar pedras todo dia inaugura esse espaço que não pretende falar de sonhos e nem de pedras com muita frequência. brincar de esconder pretende ser uma newsletter de crônicas, ensaios, dicas culturais e tudo mais que me der na telha.
adquiri o hábito de anotar meus sonhos desde quando comecei a fazer terapia. às vezes, me choco com o quanto eles podem dizer sobre e para mim. mas também são decepcionantes quando evaporam da cabeça ao acordar (que é a maioria dos casos).
Feliz de te ler por aqui 😊